21 abril 2005

IR AO DENTISTA É BOM, TIRAR DENTES NÃO

21 abril 2005
Levi Nauter, 21/04/05.

“A relevância da metáfora não se reduz, entretanto, ao seu papel de ampliação da compreensão dos fenômenos que queremos conhecer, apesar de ser primariamente esse o seu papel. (...) A metáfora pode ser concebida também como uma operação do pensamento pautada pela mobilização do espírito diante do mundo.”

MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA, antropóloga, professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da UFRN, coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade – Grecom



Há algum tempo fiz o temível tratamento de canal. Horrível foi a sensação de sentir aquela broca, aquele negócio entrando metodicamente na raiz dentária a caça de nervos. A finalidade é matar o nervo e, assim, não mais sentirmos dor. O dente continuará no mesmo lugar, simplesmente será aberto, far-se-á apenas o necessário para matá-lo, deixá-lo indolor. Não mudará a cor, nem ficará frouxo, tampouco afetará os outros. Ou seja, tudo aparentemente ficará igual. Aparentemente. Porém, na verdade, estará morto. Morto, nunca irá nos incomodar e continuará fazendo a mesma função. Dependendo do dente que se extrai até o riso muda. E a vida sem o riso não tem graça. É por isso que os odontólogos preferem tratar a extrair essa pequena peça ajudadora do nosso paladar e, de certo modo, embelezadora do nosso sorriso.
A única forma de evitar todo esse pesadelo é fazendo rigorosamente a higiene bucal. Ainda assim, um dia chegará a nossa vez.
Às vezes somos uma espécie de dente. Tudo está bem, aparentemente tudo vem funcionando legal. Mas, de repente, começa uma pequena fisgada que se vai intensificando e, dentro em pouco, não agüentamos. Feliz ou infelizmente nosso lugar de trabalho é onde passamos a maior parte do tempo. Há quem diga franciscanamente que ele deve ser o nosso segundo lar. Não, definitivamente não tem que ser. Há que se separar os papéis. O lugar de trabalho é um lugar profissional. Nele temos de saber qual é o nosso papel, desenvolver nossas atividades segundo as atribuições que nos cabem. Não é um lugar para carinhos, para intimidades. Claro que não somos frios a ponto de não ouvirmos quem eventualmente precise expor algum problema. No entanto, saibamos que ali não será o melhor lugar. Essas questões, sempre possíveis, devem ser tratadas num outro lugar. Pois quem assim não faz corre o risco de confundir as coisas. Confundindo, começam os problemas: tacham-nos de puxa-sacos, de CDFs, e por aí se vai.
Também feliz ou infelizmente o local de trabalho tem sido um lugar de briga por brilho. É comum observarmos pessoas brigando por coisas que muitas vezes parece-nos uma verdadeira futilidade. Há um brilho de estrelas. De pseudoestrelas. Briga desse tipo só pode ter um ‘quê’ de ciúme. Os que exercem cargo com um certo poder então...
Sófocles há aproximadamente 400 a.C., dizia que “não se conhece verdadeiramente um homem, sua alma, sentimentos e intenções, senão quando ele administra o poder e executa as leis.” Que tal? Já o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano diz que nós preferimos os mortos porque, na lápide, colocamos o que bem dá na nossa telha. Morto não retruca.
Penso que devemos tentar não deixar o dente do trabalho doer. Cuidemos para que a cárie não chegue ao ponto de ter que se tratar o canal ou extrair o dente. A alternativa é procurar o dentista o mais rápido possível e tirar a cárie. Dá um certo trabalho, o barulho da broca é chato. Contudo, pelo menos, continuamos com o dente vivo. Morrer dá mais trabalho, mas não vamos deixar de exercer as mesmas coisas. Seremos, neste caso, uma espécie de marionetes. Prefiro meu dente vivo. Um morto só por estética não é legal: não sente quando como algo quente ou frio. Está indolor, dormente. Deve ser triste quando chegamos ao ponto de, em nossa vida, estar dormente.

“Uma pessoa mexe-se, pensa, pergunta, duvida, investiga, quer saber, e se é verdade que, forçada pelo hábito da conformação, acaba, mais tarde ou mais cedo, por parecer que submeteu aos objectos, não se julgue que tal submissão é, em todos os casos, definitiva.” JOSÉ SARAMAGO, in A Caverna.

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