30 outubro 2006

Graça Divina

30 outubro 2006 0
Caetano Veloso e Jorge Mautner
Ao seguir aquele vulto
Que percorria o labirinto
Descobri que era eu mesmo, oculto
Dentro das coisas que sinto
E que só sei dizer em prosa e verso
E quando as canto, eis que pronto surge
A rosa do universo
Que desfila ao meu lado
Entre as mãos de um negro anjo alado
Que distribui lá do meio da neblina e da fumaça
A graça que vem de cima
E vem de graça
Porque é a graça
E é divina

PÓS-ELEIÇÕES – 2006

Levi Nauter
Agora que estamos liberados pela "democracia" para falarmos, pretendo dizer,democraticamente, de alguns absurdos que ouvi durante a campanha eleitoral. E começo por deixar claro, a quem interessar possa, que não estou magoado com ninguém como andaram dizendo alguns pseudoesquerdistas que sabem - muito bem - aproveitar o dinheiro que ganham como fruto do vestir uma camiseta d'um partido que esteja no poder. Nunca foi esse o meu objetivo; ao contrário, prefiro, tanto quanto possível, estar longe das artimanhas muitas vezes meretrizadas justamente para a perpetuação do poder, contrariando a necessária possibilidade de mudanças. Estou, aí sim, indignado com a prostituição que, em geral, circunda a política partidária brasileira. Indigno-me com a vergonhosa cegueira que vem tomando conta (e tomando ponta) sob o que vem parecendo ser uma piada: "não sei e tenho raiva de quem sabe". Estou, contudo, na dualidade indignação/paz.
Em função de não acreditar em neutralidade, esclareço que minha posição político-ideológica pende fortemente para a esquerda, em que pese esta palavra carecer de melhor reflexão semântica. Pois, justamente por isso não posso ficar calado ante o autoritarismo, ainda que velado, pautado na arrogância e em sutis ameaças.
Houve pressão descabida, por parte de alguns "companheiros", partindo de falácias parecidas com as que discriminaram a governadora eleita por ela ser natural de outro estado e, em conseqüência, quem é daqui vota somente em conterrâneo. Mesmo erro ao imaginar e jogar ao povo que a privatização está dada. Em relação à naturalidade da, agora eleita governadora, nem vale a pena discutir, tal a feiúra do pobre argumento. Já quanto às privatizações, ao menos por enquanto, nada há para se provar. Quando (e se) elas ocorrerem, bem, então teremos de fazer algo - uma vez que discordamos delas.
A sorte da esquerda talvez esteja na quase acriticidade de algumas pessoas, o que já está mudando - note-se alguns municípios do estado, como Gravataí, por exemplo. No contraponto isso também ocorre - o caso de Canoas pode ser o outro exemplo. Dito de outra forma, as pessoas estão aprendendo a ouvir o que os "cabos eleitorais" têm a dizer e, exercendo seu sagrado direito, votam como bem entendem no secreto da urna. Há que se mudar a estratégia, engodar não vem mais calhar.
Dois dias antes das eleições, ouvi de alguns “companheiros”: “se tu acha que tá ruim tu vai ver, vai ficar muito pior”. Em quase todos os redutos ditos de esquerda pelos quais passei ou com as pessoas que conversei ouvi e li coisas absurdas. Minha caixa de entrada de e-mails sempre recebia a visita de textos que, uno-me a Eduardo Galeano, era um verdadeiro teatro do bem e do mal. Embora sendo eu alguém mais propício a ser de esquerda (mesmo tendo decidido ‘cortar meus braços’), tenho que admitir que as coisas que li intentavam contra minha inteligência. Como diria Gonzaguinha num de seus clássicos: “não dá mais pra segurar...”. É preciso mais respeito para com as pessoas. E como sempre ouvimos que a educação ‘canhota’ quer ser mais libertadora, permita-me conclamar, em uníssono, com um dos maiores representantes dessa educação, Paulo Freire, que não cansava de dizer que temos de lutar contra qualquer sistema que nos “proíba de ser, de perguntar, de discutir, de intervir, de ser um ser humano decente”[1].
Obviamente, defenderei a educação libertadora porque nela acredito. Minha história parece não me dar outra opção. Mas não posso nem vou admitir que, com argumentos espúrios, cerceiem minha tão suada liberdade de pensamento, bem como o direito de me calar ou não quando considerar necessário. Sejam quais forem as razões, o respeito ao ser humano deve pautar as relações, inclusive as partidárias. Precisamos mudar a estratégia, a teoria do medo não está dando efeito. Muito menos querer ganhar no grito, na perpetuação do machismo, do autoritarismo ou coisa que o valha.
Por fim, declaro que votei na esquerda, esquerdamente! E fiz isso não por receio, por exemplo, de perder algum tipo de cargo; o meu foi conquistado legalmente, via concurso público. Também não o fiz para preservar alguma imagem ou vantagem – estou no mundo não necessariamente para que gostem de mim, mas para que, no mínimo me respeitem. Fiz porque julguei ser melhor não trair minhas convicções.
Porém, cogitei e quase lamentei não ter outra opção esquerda.




[1] FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. Ana Maria Araújo Freire (org). São Paulo: Editora UNESP, 2001, pág. 80.

22 outubro 2006

A VOZ DE DEUS

22 outubro 2006 0
Levi Nauter
Hoje experimentei a multiformidade de Deus
Ele falou comigo
ouvi os pássaros,
o barulho do vento nas árvores
e nas folhas pelo chão
escutei o martelo batendo na madeira
um outro batendo num ferro
a água que corria na calçada
o salto alto da mulher que estava atrasada
um bem-te-vi alimentando-se em cima de uma telha
o barulho do rato
minha barriga roncando
a lixa de unha que minha amada utilizava
um carro que freiou bruscamente
o mar, a chuva no telhado
a goteira, o copo no qual servia-se o refri
o gole
o arroto
a evacuação
a força
o papel
a descarga

15 outubro 2006

Quando se publica um texto

15 outubro 2006 0
Levi Nauter
Quando se publica um texto, seja na forma livro ou e-livro ou até em outro formato, não temos mais domínio sobre ele. Quem o lê inevitavelmente chegará a conclusões próprias. Que bom, diga-se de passagem, a democracia e a liberdade têm essa característica, entre outras. Acontece que, como uma mãe cuidadosa com os filhos, a gente sempre tem uma idéia, uma espécie de finalidade quando senta na frente de um computador ou pega um caderno e põe-se a escrever. Tais objetivos podem não combinar com o que o nosso leitor espera ou vai interpretar.
Uma das hipóteses para essa ocorrência tem a ver com as nossas vivências. Eu tenho um determinado círculo de amizades, de leituras do mundo (cosmovisão) e da palavra (livros, jornais, revistas, filmes etc), meus trejeitos característicos que me tornam uma pessoa singular. Todos os seres humanos são assim. É possível que em algum momento meus gostos combinem com os de outros (música, por exemplo), verificamos um princípio de afinidade. A afinidade parece, então, estar ligada a, digamos, gostos comuns. Digo parece porque temos de observar outra questão: também é possível um relacionamento interpessoal a partir das diferenças. Neste particular, alguma outra coisa pode dar o sustento, o respeito é uma hipótese. Existem pessoas que cujas idéias são frontalmente opostas as minhas, mesmo assim temos uma boa relação. Não é o caso de minha esposa (a querida e especial Lu). Com ela a relação é de pura afinidade, em que pese igualmente pautar-se pelo respeito. Ocorre que a afinidade é maior. Se não tivéssemos afinidades seria difícil convivermos; poderíamos ter respeito (e temos) um pelo outro, mas isso não bastaria. A razão parece ser simples: há muita gente com as quais tenho somente respeito, não afinidade. Com essas posso trocar idéias informações, aprender e apreender uma série de coisas. Porém, a afinidade tornaria mais dinâmica essa relação, daria mais profundidade.
Interessante notarmos que a relação por afinidade transcende as regras, o que parece não ocorrer com o simples respeito. Quando nos relacionamos com alguém somente com o respeito, fazemos determinadas ações porque previamente sabemos que “isso ele/a gosta, aquilo não”. Deve ser muito chata uma convivência por regras, a quebra de uma delas pode comprometer o resto. Mas também penso que tanto a afinidade quanto o respeito precisariam entranhar-se de humanidade. Quero dizer que deveríamos procurar/tentar entender o ser humano que existe em nós, i.e., erros, mal-entendidos, falhas na comunicação, decepções, alegrias, tristezas, indignação, estagnação, dinamismo, e, enfim, tudo o que nos faz gente.
Ao escrevermos um texto, nele colocamos, conscientes ou inconscientes, essa humanidade, essa pulsão de vida e/ou morte que está em nós. Um texto, portanto, é um registro do momento. Não significa não mudança, estagnação. Ele reflete um momento histórico, encerra-se nele uma cosmovisão sócio-histórica importante. Por isso é importante a história do autor, não para dizer que ele é necessariamente um reflexo de seu texto, mas, sim, que, de certa forma, foi um momento em que toda sua humanidade, gentetude, estava focada num determinado lugar (assunto que gerou o texto). Quando escrevemos, registramos nossos pensamentos – que, não custa reafirmar, vêm entranhados de outros de cuja essência nos apropriamos.
O problema está na publicação. Torna-se público o que era um pensamento seu. No entanto, a letra, seca, sem gestos, às vezes sem notas de rodapé, tem um efeito contrário ao que esperávamos. Algo aparentemente sem muita pretensão pode tornar-se uma bomba. Por que isso acontece? Pois quem lê não tem, mesmo que queira, a nossa vivência, o nosso círculo de amizades, a nossa cosmovisão, o nosso conteúdo sócio-histórico. Na verdade, na verdade o problema, mais especificamente, está na leitura. Isso é o que venho chamando de as implicações do dizer. Num outro texto que publiquei, escrevi sobre o direito de dizermos o que pensamos[1], falei a respeito da importância de outros lerem o que pensamos, o como vemos o mundo, entre outras questões. Mas não toquei nas implicações do nosso dizer.
Pois quem lê traz à tona suas próprias vivências e as coloca entre a sua leitura e o texto. Ou seja, se esquece que “quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos seu processo mental... Quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar.” (Schopenhauer[2], p. 127). Pode-se dizer que o leitor deveria ter como ideal conseguir ler sem dar pitacos, num primeiro momento. Em seguida, aí sim, poderia/deveria relacionar o lido com suas próprias vivências para, só então, exercer o seu direito de dizer. começaria um círculo textual: alguém escreve, é lido; esse leitor (re)escreve e é respondido com a ampliação do primeiro texto/discurso e assim sucessivamente até, talvez, se chegar a um consenso ou alguém entender que não valha a continuidade do diálogo.
Tal recurso dialógico será possível na medida em que perpassar pela afinidade ou pelo respeito. A primeira opção possivelmente seja mais duradoura e promete uma boa quantidade de textos; a segunda pode ser que canse mais facilmente.

Num blog e numa crônica o texto é mais livre. Há um certo objetivo, claro, mas, sobretudo, há uma pessoalidade que dispensa formalismos até gramaticais. Alguns estudos apontam que até a linguagem internética está sendo mais aceita. Que tal aceitarmos mais a diversidade advinda no embalo pós-moderno? Quem sabe não sejamos mais sábios a partir do respeito à palavra do outro, apenas limitando-nos a dizer “concordo” ou “discordo”? Que tal assumirmos as implicações de dizermos nossa palavra? E se não cometêssemos o mesmo erro histórico da igreja que nega a palavra a quem pensa diferente? Que você acha de mais diálogo, mais dialética, mais tensão no discurso?
Vivam as palavras, as leituras, os escritos, os papéis, as mentes, os inquietos, os quietos, os loucos, os sóbrios, o lápis, a caneta, o computador, a internet, a Bíblia, a literatura, a pseudoliteratura, os poetas, a coragem, a humildade, o desafio, o papel em branco, a idéia, os dedos, a boca. A vida. O Autor da Vida.

[1] Crônica na Eja: instrumento daquilo que se pensa ou se quer dizer. In Reflexões sobre a educação de jovens e adultos. Santa Maria: Pallotti, 2006.
[2] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Trad., Org., Prefácio e nodas de Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2005.

CARAS

Levi Nauter


Não nasci rico, ainda bem
Não preciso, assim, fazer pose
Poucos conhecem minha casa
Não ligo para lugares fashions
Nunca precisei me esconder



Não faço plástica
Não tenho avião particular
Não faço regime
Não sou chique


Não vou a lugares caros
Não pago nada pra ninguém


Não tenho jatinho
Não tenho barco
Não tenho ilha
Não tenho namorado


Mas vivo tanto quanto eles
Mas faço sexo, como
Mas tenho necessidades fisiológicas
Mas adoro algumas coisas e odeio outras
Mas peido e mijo


Ocorre que ninguém me fotografa
Ocorre que ninguém fica sabendo


Definitivamente
sou um
sem
caras

12 outubro 2006

QUEM SOU EU

12 outubro 2006 3
Levi Nauter
Há um ano tomei a decisão de não mais freqüentar uma igreja-instituição, formalizada, com suas regras bem ou parcialmente definidas. Tem sido uma experiência interessante, curiosa, triste e alegre. Interessante porque é uma experiência nova (sobre a qual estou escrevendo mais pausadamente - em breve vou disponibilizar por e-mails e, talvez, pelo blog[1]), instigante e até excitante saber-se querido e amado por Deus. Obviamente que continuo respeitando quem opta pela formalidade, a metodologia científica está aí - todos os trabalhos têm uma certa aparência parecida - e todos conseguem se informar e/ou formar, em que pesem as regras. Contudo, prefiro, ao menos por ora, dar-me o luxo de passar ao largo de tais requisitos eclesiais.
Acredito que o amor, a graça e a transcendência de Deus são, estranhamente, mais palpáveis fora dos templos, fora de um ciclo, muitas vezes vicioso, de irmandade cujos discursos bem podemos decorar e não apreender ("paz do Senhor", "irmão", "tudo bem?", entre outros). Muitas cotidianidades, antes com aparente pouca relevância, passam pela re-cordação (voltam ao coração) e são ressignificadas. A palavra igreja é uma delas. Tal como o amor, que propicia bifurcações de sentido, igreja passa paulatinamente a ser entendida como instiuição (todas as formalidades e hierarquias possíveis), de um lado, e como corpo (lugar da humanidade, da gentetude, portanto, da possibilidade do erro, do perdão...), de outro lado. Esse entendimento parece-me de fundamental importância para entendermos que há um lugar no qual podemos ser humanos, passíveis de erros (sobretudo a certeza de que não seremos menosprezados) e, também, para exercermos nossa possível e necessária intelectualidade. Ao mesmo tempo, um lugar de convívio que não abre mão da criticidade, do respeito, da esperança, da racionalidade, da sensibilidade.
Ocorre que essa visão não interessa aos autoritários/fundamentalistas líderes evangélicos, especialmente advindos de igrejas pentecostais, neopentecostais e afins. Interessa, sim, a dominação, a inquestionabilidade, o amém. Com tristeza, penso que há mais opressão do que libertação na "casa do pai". O evangelho genuíno, a meu ver, tem de (e não que) ser, obrigatoriamente, libertador.
Como esse é um assunto longo e quero discutí-lo com mais vagar noutro texto, vou para os finalmente: o meu espanto.
Ocorre que, após a decisão de me desinstitucionalizar, recebi (e ainda continuo) vários mails cujo conteúdo execra minha opção. Alguns disseram que me tornei humanista, que só penso racionalmente. Os mais ousados não titubearam: "você vai pro inferno", "precisas rever teus conceitos bíblicos", "a submissão a um líder é mandamento bíblico, se não cumpre isso és um rebelde". Ainda outros, mais amenos, restringiram-se a comentar que tenho posições radicais para algumas coisas e frouxas para outras.
Para meu próprio alívio e raiva de outros "irmãos", continuo pensando como cantou nosso Raul Seixas: "prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Melhor que isso, encontrei uma poesia do instigante teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer na qual encerra tudo o que penso sobre essas questões quase irrelevantes. Leiamos:
Quem sou eu?

Quem sou eu?
Seguidamente me dizem
Que saio da minha cela
Tão sereno, alegre e firme
Qual dono de um castelo.

Quem sou eu?
Seguidamente me dizem
Que da maneira como falo
Aos guardas, tão livremente,
Como amigo e com clareza,
Parece que esteja mandando.

Quem sou eu?
Também me dizem
Que suporto os dias do infortúnio
Impassível, sorridente e com orgulho
Como alguém que se acostumou a vencer.

Sou mesmo o que os outros dizem de mim?
Ou apenas sou o que sei de mim mesmo?
Inquieto, saudoso e doente,
Como um passarinho na gaiola,
Sempre lutando por ar, como se me sufocassem,
Faminto de cores, de flores, de pássaros,
Sedento de palavras boas, de proximidade humana...

Que sou eu?
Este ou aquele?
Sou hoje este e amanhã um outro?
Sou porventura tudo ao mesmo tempo?
Quem sou eu?
A própria pergunta nesta solidão
De mim parece pretender zombar.
Quem quer, porém, que eu seja,
Tu me conheces, ó meu Deus:
SOU TEU.

Só para lembrar, Bonhoeffer foi torturado e morto no campo de concentração durante o nazismo. Atualmente há outros torturadores por aí. Paradoxalmente fazendo tremular a bandeira do cristianismo. Ah, se Cristo descesse com o relho...

[1] www.levinainternet.blogspot.com

01 outubro 2006

FUI

01 outubro 2006 2
Levi Nauter
Desde hoje decidi ser um cara legal
parei de reclamar, parei de chorar
cessou meu riso, acabou o improviso
terminou a delicadeza
a certeza.
Deixei de ler, deixei de ver
parei de pensar
parei de falar
não coloco roupa
estou nu
pelado
quieto
Não excito
nem me excito
não existo
Dei um tiro em mim
não incomodo mais
não me incomodam mais
desde hoje sou humilde, sou o menor
estou no nível mais baixo
morri
 
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