13 janeiro 2011

foi-se 2010

13 janeiro 2011 0
Levi Nauter




Há um significado especial para mim no ano que findou. Foi nele que acabei com as minhas dívidas. Ou melhor, acabamos – eu e a Lu – com aquilo que nos prendia. Podemos sonhar novos projetos. Deveria ser um privilegio de todos, porém, infelizmente, a vida real não é tão fácil quanto gostaríamos. É um feito, todavia, ter-se casa própria, em terreno próprio, sem alienação fiduciária; soma-se a isso não dever nada para ninguém e temos, então, boas razões para comemorar o esforço empreendido. Houve noites em que eu almejava conversar mais um pouco com a Lu, paparicar mais minha filhota, mas o cansaço, o sono foram prevalentes e eu acabei sucumbindo aos roncos. Tudo valeu a pena.
Dediquei-me a leitura de livros ligados à educação e à área jurídica. A ficção teve de aguardar nas prateleiras da minha sala de estudos. Pude constatar e ratificar minha preferência por bons autores nacionais àqueles que enveredam na escrita a partir do norte (e talvez só por isso ganhem status de norteadores). O sul tem mais ranhuras, eu acho; há mais sangue e mais calo. Nele é necessário largar o gabinete com o ar condicionado e suar a camisa, pôr a mão na massa. Numa metáfora com a construção civil, no Sul a gente é bem mais pedreiro e servente que mestre de obras ou engenheiro civil (ou, ainda, arquiteto). Faço coro com o meu mestre Freire preferindo ser suleador a norteador.

Os vivos são governados pelos mortos. Que nada, os vivos são governados pelos mais vivos ainda.
Jorge Mautner e Nelson Jacobina[1]

No campo jurídico, deliciei-me com a densidade de algumas palavras, ao mesmo tempo em que me rendi ao saudoso Tom Jobim: “quanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada, ou quase nada”[2]. O truncamento de alguns textos relembrou-me a máxima de que a lei parece beneficiar os mais abastados e, de preferência, os que pegam menos sol, em que pese o sol nascer para todos.

“As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa.” Ítalo Calvino[3]

Na prática profissional tive uma das minhas melhores experiências. Trabalhei, à noite, numa comunidade considerada de alta vulnerabilidade social. Acompanhei, in loco, o linguajar violento, a facilidade da briga pela briga; a chuleza da música funk – que banaliza o sexo – e a esperança cantada em versos, no balanço do hip-hop. Notei o descaso do poder público (especialmente no que concerne à saúde, ao saneamento básico, à infraestrutura do lugarejo) contrastando com placas que anunciam feitos de pouca repercussão prática. Trabalhar com EJA é trabalhar com a realidade de um submundo. Conversei com gente vinda do interior para tentar a sorte perto da capital; com aqueles cujos pais consideravam mais importante uma renda financeira a mais. Mas também com os que reconheciam ter usado a juventude para ‘aproveitar a vida’. Atendi à alcoólatras, fumantes inveterados, prostitutsas, catadores/recicladoress, pais(mães)-de-santo, pastores e aspirantes a pastores. Vi crianças tomando bebida alcoólica. Vi mulher, mas também homem apanhar de seus companheiros. Tocou-me sobremaneira ver muitas pessoas sob o efeito de psicotrópicos. Certo dia uma moça dizia estar vendo o capeta; ela colocava as mãos na cabeça (região dos ouvidos) e gritava: “sai pra lá, Deus está comigo”. Era de arrepiar. Um vacilo poderia significar uma bolsa, um casaco ou celular furtados. Por mais que nos considerassem mestres, um olhar ‘atravessado’, um ‘não’, um ‘estude mais!’ poderia custar alguns arranhões no carro. Eleger o como dizer sempre foi o ‘x’ da questão. Experiência de mundo real que possivelmente repetirei no ano vindouro.
Para mim, a síntese do ano seria a consciência do quanto um discurso pode criar ou destruir algo.
Que venha 2011.








NOTA
Texto escrito em 01-01-2011. Digitado ao som de Lizz Wright – CD Fellowship. Uma voz negra que não se encontra em qualquer canto. Vale a pena conferir.
A foto ilustrativa é da arte feita pela Lu, meu amorzão, para a nossa porta em casa.




[1] Trecho de ‘Morre-se assim’, uma das músicas do ótimo CD Eu não peço desculpas, de Caetano Veloso e Jorge Mautner.
[2] Música “samba de uma nota só”, de Tom Jobim e Newton Mendonça.
[3] CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Trad. Diogo Mainardi. Tradução de Lê cittá invisibili, 1972, pag. 44.

 
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