24 outubro 2008

luxo só

24 outubro 2008 0

Levi Nauter


Minha querida amiga Liliane Barsante, com quem tive o privilégio de estudar, escreveu um belo texto sobre esse (pseudo)conforto alardeado pelas empreiteiras e, não esqueçamos, subscrito pelo Estado – Caixa, por exemplo. Leiam, vale a pena: http://intransitiva.blogspot.com


Quando pensamos em onde morar, aproximadamente há um ano e meio, fomos visitar alguns lugares. Vivemos isso na prática. Cheguei ao ponto de dizer: “só um pouquinho, quanto custa sem isso tudo?”.

Graças a Deus, adquirimos um modesto terreno num lugar no qual a felicidade não mora. Por ora, não tenho cerca ao redor do pátio. Assim é que tenho de manter contato com meus vizinhos. E isso é ótimo. Tem sido uma experiência maravilhosa conversar com eles; fazer 'ponte' na bateria do carro, combinar carona, tomarmos um suco e, em época de gravidez, ganhar revistas e paparicos (isso é o que a Lu tem vivido).

E tem mais: qual a razão de tanto conforto sem o saudável suor do dia-a-dia? Por que é necessário espaço pra isso ou pra'quilo? Que monótono deve ser a vida sem suor, sem o esforço, sem as devidas opções de escolha que nos deixam genteficados. Reitero que tem sido uma bela experiência cortar grama, capinar, carregar tábua, comprar materiais de construção, dormir tarde, acordar cedo, dar um beijo na Lu antes de sair de casa, não ter bateria no carro, ter de ser um pouco pedreiro, um pouco jardineiro, um pouco bisbilhoteiro, um muito cansado.

Mas o melhor de tudo é acordar às 5h da manhã e, uma hora depois, encontrar esse presente divino que coloquei acima. O sol estava nascendo sob o fundo musical dos pássaros. Ou seja, às vezes a felicidade me encontra pelo caminho – graças a Deus.


DIÁLOGOS SOBRE A EDUCAÇÃO - minhas leituras


Levi Nauter



[DIÁLOGOS SOBRE A EDUCAÇÃO - minhas leituras]

A pedido, este texto será parte de um trabalho feito por um grupo de estudantes de pedagogia de uma grande universidade. Isso aumenta a responsabilidade do que vou dizer; ao mesmo tempo, enobrece meu suor na tentativa muitas vezes infeliz de tentar polir meu texto. Tudo começou com a pergunta “como te tornaste um leitor?”. Dei pequenas explicações, mas senti-me eufórico ao começar a conversa. Lembrei do Nietzsche que escreveu Ecce Hommo e deu o seguinte subtítulo: de como a gente se torna o que a gente é. Obviamente que não tenho a sagacidade nietzscheana, talvez no final de meus dias terreais chegue mais perto. De outra parte, porém, não sou acrítico – o que já é um bom começo.




Minha incursão no mundo da leitura, que passou pela escrita e chegou na pesquisa vem desde a minha tenra idade. Nada tem a ver com a escola. Esta aprimorou uma alfabetização adquirida na infância pela minha mãe. Quase todos os meus irmãos chegaram com um bom nível de desenvolvimento na escola. Nela houve uma melhor sistematização daquilo que sabíamos, o acréscimo de mais algumas informações e a poda de muitas outras coisas que, segundo as professoras, era cedo saber. Na escola e em casa fui forçado a fazer muitas atividades que eu não gostava.

Meus pais pertenciam a uma religião que classifico como fundamentalista. O resultado disso foi que durante um bom período de minha infância minhas leituras se restringiram a textos bíblicos. Os evangelhos, as cartas paulinas e, claro, os salmos e os provérbios. Muita coisa eu não entendi, ou seja, li muito sem levar em conta o contexto e sem saber o significado mesmo. Lembro-me, agora, das tantas vezes que – por não haver dicionário – eu ficava tentando adivinhar o que poderia ser dracmai. Lia a parábola e não fazia a menor idéia do que fosse. Tinha apenas uma certeza: era algo de valor, do contrário, como perder tempo atrás de algo sem importância?

Outra característica desse tempo foi minha acriticidade. O sagrado foi de tal modo incutido em mim como algo irremediavelmente dado; seria perder tempo querer questionar. Até meus dez anos (acho) vivi assim.

Eis que entra minha mãe em cena. Diarista, certo dia ela ganhou uma sacola de gibis. Trouxe para casa e foi obrigada por meu pai a consumir com aquelas ‘bobagens’. Consegui salvar um exemplar debaixo do meu colchão. Sei que era da Walt Disney. Não lembro uma história sequer. Apenas recordo um título parcial sobre um belo desenho: cai a noite em Patópolis.


Na escola jamais tive momentos de leitura. Nenhuma professora ou professor falou apaixonadamente sobre algum autor – nem nacional, nem internacional. Mas castigo havia. Até a sexta série muito fui castigado. Confesso que não fui flor de se cheirar. Mas também confesso que sempre me incomodou lembrar das vezes em que cheirei o quadro-negro, com as mãos para trás. Lembro de uma colega (com quem tenho um bom contato até hoje) que muito chegou da escola com o nariz pintado de giz. Essa diabólica professora – de quem jamais esqueci o nome – adorava dar lições de moral em nós. Cortou minhas unhas, deu-me um banho com sabonete na pia do banheiro e, certa feita, proibiu-me de tossir por causa de alergia ao giz. Para ela, aluno que incomodava tinha que ficar de castigo na biblioteca. Biblioteca era lugar de silêncio, o espaço ideal para quem não ficava calado em meio as suas explanações. Lá a bibliotecária era carrancuda, odiava alunos. Já saíra da sala de aula porque nela só havia aluno. Aluno dava-lhe ojeriza. Ironicamente, porém, foi lá e por ela que ouvi a primeira história contada: As Bodas. Não lembro de que se tratava nem sei quem é o autor. Sei que gostei porque ia na contramão do que eu lia sobre as Bodas Celestiaisii.

Param por aí minhas lembranças da infância.

No final da oitava série, quase iniciando o ensino médio, agarrei uma mania devido ao meu comportamento de alguém que não é mudo: semanalmente ia para biblioteca como castigo por conversar em demasia. Essa mania carrego até hoje. Sou sócio em três bibliotecas municipais. Adoro ficar verificando as relíquias do acervo. Já aconteceu de um sócio estar procurando um determinado exemplar e eu ouvir o bibliotecário dizer “este não temos” apesar de eu saber exatamente onde se encontra o dito cujo. Consciente ou não as atitudes questionáveis dos professores muito contribuíram para o meu ingresso na leitura. Eles não me indicaram obras, jogaram-me no meio e, como que dissessem “te vira”, eu tive que fazer algo.


Ser leitor é querer saber o que se passa na cabeça de outro, para compreender melhor o que se passa na nossa. Jean Foucambert


Então comecei a ‘perder’ tempo olhando títulos, autores bem como a disposição das obras nas prateleiras. Alguns títulos começaram a chamar minha atenção. Li O guarani, do José de Alencar, odiando. A professora nos obrigou. Mas por prazer li É tarde pra saber, do Josué Guimarães. Quanta diferença ler por prazer e ler para fazer!


Já estagiário, minhas leituras mesclavam interesses literários com os profissionais. Estes enveredaram para a Qualidade Total e para a área da Informática. Foi aí que descobri a escrita. Igualmente percebi que o lido vinha à tona na hora de escrever. Um léxico se aprimorava na medida em que ia testando-o no interior de frases, períodos e parágrafos. Euforicamente notava que escrever me libertava de amarras ideológicas, isto é, eu era livre para dizer o que bem entendesse sem ser condenado por isso – afinal, eu não precisava mostrar meu texto a ninguém. Escrevia, nessa época, como uma terapia, tal ato me aliviava.


Tive dois grandes saltos literários, por assim dizer. O primeiro deles foi quando iniciei um curso técnico em segurança do trabalho. Nele os professores me ensinaram que um jornal possui mais que páginas esportivas e policiais; aprendi a ler, por exemplo, o caderno de economia. Tive aulas de redação, um português chamado instrumental e leituras que mesclavam auto-ajuda e ficção. O segundo salto foi minha entrada na faculdade de letras. Além de aprofundar bastante as leituras, aprendi a contextualização de um texto. Após a crítica e a teoria literárias comecei a perceber o lado bom de ter-se referenciais teóricos. No entanto, nunca ficar preso a eles. Aprendi que preciso duvidar dos livros, que é necessário fazer perguntas. Ler muito, e buscar referenciais é o que nos vai tornando pesquisadores. Assim é que vamos como que duvidando daquilo que nos dizem e as leituras vão sendo ampliadas. Nossas deficiências começam sobressair e vamos buscando saná-las. Torna-se um processo circular: lê-se, escreve-se, ratifica-se ou retifica-se as bases teóricas e se faz tudo novamente.

É por isso também que as leituras vão ficando mais seletivas. O processo de escolha delas vão passando pelo crivo da criticidade. Alguns textos, a meu ver, podem ser chamados tão-somente livros; outros, no entanto, de obras. Estas é que ficam. Elas nos fazem ranhuras e, sem notarmos, começa em nós um processo bem descrito pelo poeta-músico Gilberto Gil: “morrenasce, trigo, vive morre, pão”. Ou seja, a leitura nos alimenta. Torna-nos melhores.








i Lucas 15.8-10. Minhas leituras eram na terrível versão Almeida Revista e Corrigida. Anos mais tarde, chegou ao Brasil uma versão que me salvou, A Bíblia Viva: “...uma mulher tem 10 valiosas moedas de prata e perde uma...”. ufa!


ii Mateus 25, especialmente o verso 10.


 
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