30 abril 2005

ZECA BALEIRO está falando por mim

30 abril 2005 0
Humanos que somos, nem sempre temos a inspiração necessária para escrever. Foi o que aconteceu comigo nesta semana. Além do tempo, faltou consistência no texto. Semana que vem acerto. O texto será A MATRACA NOSSA DE CADA DIA. Em época de muitos discursos, de prévias e exibicionismos vamos tentar refletir sobre as questões de representação.

Enquanto não chega o dia, fiquemos com um belo texto de Zeca Baleiro. Trata-se de 'Minha Casa', música do belo CD Líricas (2000).

É mais fácil cultuar os mortos que os vivos
Mais fácil viver de sombras que de sóis
É mais fácil mimeografar o passado
Que imprimir o futuro

Não quero ser triste
Como o poeta que envelhece
Lendo Maiakóvski na loja de conveniência
Não quero ser alegre
Como o cão que sai a passear
Com o seu dono alegre
Sob o sol de domingo
Nem quero ser estanque
Como quem constrói estradas e não anda
Quero no escuro
Como um cego tatear estrelas distraídas
(...)

21 abril 2005

MEDO

21 abril 2005 0
Levi Nauter, mai/2000.


Sensação horrível,
Um aperto no coração
Um nó na garganta.
O bater da vida você vê na veia
E é forte. Corro, corro
Mas não saio do lugar
Embora não tenha corrido tanto antes
O ar até parece não sobrar para mim
Abro a boca e sugo com vontade
Lembro-me das pessoas que mais quero bem
Ou apenas me concentro em mim mesmo
Sinto coisas que nem percebo
Como é chato o fato de ter medo.

IR AO DENTISTA É BOM, TIRAR DENTES NÃO

Levi Nauter, 21/04/05.

“A relevância da metáfora não se reduz, entretanto, ao seu papel de ampliação da compreensão dos fenômenos que queremos conhecer, apesar de ser primariamente esse o seu papel. (...) A metáfora pode ser concebida também como uma operação do pensamento pautada pela mobilização do espírito diante do mundo.”

MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA, antropóloga, professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da UFRN, coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade – Grecom



Há algum tempo fiz o temível tratamento de canal. Horrível foi a sensação de sentir aquela broca, aquele negócio entrando metodicamente na raiz dentária a caça de nervos. A finalidade é matar o nervo e, assim, não mais sentirmos dor. O dente continuará no mesmo lugar, simplesmente será aberto, far-se-á apenas o necessário para matá-lo, deixá-lo indolor. Não mudará a cor, nem ficará frouxo, tampouco afetará os outros. Ou seja, tudo aparentemente ficará igual. Aparentemente. Porém, na verdade, estará morto. Morto, nunca irá nos incomodar e continuará fazendo a mesma função. Dependendo do dente que se extrai até o riso muda. E a vida sem o riso não tem graça. É por isso que os odontólogos preferem tratar a extrair essa pequena peça ajudadora do nosso paladar e, de certo modo, embelezadora do nosso sorriso.
A única forma de evitar todo esse pesadelo é fazendo rigorosamente a higiene bucal. Ainda assim, um dia chegará a nossa vez.
Às vezes somos uma espécie de dente. Tudo está bem, aparentemente tudo vem funcionando legal. Mas, de repente, começa uma pequena fisgada que se vai intensificando e, dentro em pouco, não agüentamos. Feliz ou infelizmente nosso lugar de trabalho é onde passamos a maior parte do tempo. Há quem diga franciscanamente que ele deve ser o nosso segundo lar. Não, definitivamente não tem que ser. Há que se separar os papéis. O lugar de trabalho é um lugar profissional. Nele temos de saber qual é o nosso papel, desenvolver nossas atividades segundo as atribuições que nos cabem. Não é um lugar para carinhos, para intimidades. Claro que não somos frios a ponto de não ouvirmos quem eventualmente precise expor algum problema. No entanto, saibamos que ali não será o melhor lugar. Essas questões, sempre possíveis, devem ser tratadas num outro lugar. Pois quem assim não faz corre o risco de confundir as coisas. Confundindo, começam os problemas: tacham-nos de puxa-sacos, de CDFs, e por aí se vai.
Também feliz ou infelizmente o local de trabalho tem sido um lugar de briga por brilho. É comum observarmos pessoas brigando por coisas que muitas vezes parece-nos uma verdadeira futilidade. Há um brilho de estrelas. De pseudoestrelas. Briga desse tipo só pode ter um ‘quê’ de ciúme. Os que exercem cargo com um certo poder então...
Sófocles há aproximadamente 400 a.C., dizia que “não se conhece verdadeiramente um homem, sua alma, sentimentos e intenções, senão quando ele administra o poder e executa as leis.” Que tal? Já o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano diz que nós preferimos os mortos porque, na lápide, colocamos o que bem dá na nossa telha. Morto não retruca.
Penso que devemos tentar não deixar o dente do trabalho doer. Cuidemos para que a cárie não chegue ao ponto de ter que se tratar o canal ou extrair o dente. A alternativa é procurar o dentista o mais rápido possível e tirar a cárie. Dá um certo trabalho, o barulho da broca é chato. Contudo, pelo menos, continuamos com o dente vivo. Morrer dá mais trabalho, mas não vamos deixar de exercer as mesmas coisas. Seremos, neste caso, uma espécie de marionetes. Prefiro meu dente vivo. Um morto só por estética não é legal: não sente quando como algo quente ou frio. Está indolor, dormente. Deve ser triste quando chegamos ao ponto de, em nossa vida, estar dormente.

“Uma pessoa mexe-se, pensa, pergunta, duvida, investiga, quer saber, e se é verdade que, forçada pelo hábito da conformação, acaba, mais tarde ou mais cedo, por parecer que submeteu aos objectos, não se julgue que tal submissão é, em todos os casos, definitiva.” JOSÉ SARAMAGO, in A Caverna.

16 abril 2005

PISTAS PARA FILOSOFAR

16 abril 2005 0
Levi Nauter, 15-04-05


Tenho um livreto homônimo ao título deste texto. Não e sobre ele que vou falar, mas da importância de filosofar.
Há algum tempo, descobri o quanto uma viagem de ônibus, por uns quarenta ou sessenta minutos, pode ser bem produtiva. Uma boa companhia, com um bom papo supera a monotonia do tempo. Há quem prefira dormir nos coletivos – meu caso quando volto para casa ao final da tarde.
Mas de manhã...
Para o bem da verdade, o carro, o táxi, o metrô, a carroça, a bicicleta, o intervalo do almoço e tantos outros momentos de encontro podem tornar-se filosóficos. Neles podemos pôr nossas faculdades mentais a trabalhar. O educador e sociólogo Carlos R. Brandão disse que “educar é fazer perguntas” e, neste sentido, quando assim o fazemos, estamos dando o pontapé inicial ao maravilhoso mundo de SOFIA, o mundo do saber. Se não, pelo menos no mundo do pensar mais de uma vez antes de responder. Não somos nenhum Platão, Aristóteles ou, modernamente, um Isaiah Berlim. Somos simples sujeitos que vêm e vão: casa-trabalho ou casa-trabalho-estudos, enfim, neste círculo infindável.
A amizade (ou coleguismo para os mais céticos) pode ter um papel interessante nessa aventura. O inicio é quase sempre muito bom. Ambos pouco se conhecem. Na medida em que as diferenças vão criando contornos o outro começa a tomar forma. Aí começamos a ter de exercitar atributos cristãos (longanimidade), orientais (tolerância), ateus (ignorar) ou, no pior deles, xiitas (matar).
Importa-nos, a priori, o respeito, a educação, a relação horizontal. Não àquela que, como bem expressa o uruguaio Eduardo Galeano, vê de igual para igual. Rechacemos a relação de cima, que vê o outro como uma coisa pequena, de um lado; de outro, igualmente reprovemos a relação de baixo, que vê a todos como os maiores.
Há, infelizmente, os que buscam o respeito a partir do cargo. Mas também os que têm jeito, pinta, dos que possuem status e, com isso tentam respeito que d’outra forma não viria. Absurdo! Essa relação não estabelece diálogo, não estabelece conflito de idéias (princípio de crescimento). Conflito de idéias é uma coisa, conflito pessoal é outra – lembremos. Este pode, talvez por uma falta de afinidade mesmo, levar-me ao afastamento paulatino; aquele apenas certifica-me que, n’algum ponto, a afinidade desafina. E, como num instrumento musical, afinar exige ouvido que exige esforço.
Filosofar com alguém, portanto, pressupõe saber da não aceitação do outro à minha proposta. Se ao tentar o diálogo internamente penso já na aceitação tácita do outro em relação a mim, começa a desilusão. Provavelmente a melhor saída teria sido um “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. Comecemos, então, pelo que nos representa, aquilo do qual intencionamos conversar.
Voltando ao ônibus, surgiram questões como “será que a globalização rouba o que é regional?”, “o que é educação libertadora?”, “o papel da mídia no que fazemos”, “ser ateu jornalístico”, “o que é teologia latina?”, entre outras. Num recinto mais tranqüilo, sem barulho de buzinas ou freios, outros temas apareceram: estética de composição musical, autores com letras sobre o cotidiano, História versus música. Outras temáticas, digamos, mais profundas não ficaram de fora: (a) o papel da mulher ontem, hoje (faltou o eternamente), (b) a mulher selvagem, (c) o negro, o moreno ou o preto?, (c) liberdade e autonomia: qual deles temos?.
Assim, estou convencido da importância de um bom bate-papo. Ele pode suscitar muita coisa, sobretudo, filosofia. Se não, no mínimo, a fofoca.

10 abril 2005

Agora que o Papa está ‘enterrado’

10 abril 2005 0
Levi Nauter, em 09-04-05




Agora que o Papa está ‘enterrado’ voltamos ao começo. Quem vai ocupar o seu lugar? Será fulano ou sicrano?
Assim é a vida. Assim acontece em nosso cotidiano, porque cotidiano é vida. Esperamos alguém que nos é importante morrer para tomarmos algumas atitudes. Essa morte pode ser simbólica, não precisa o indivíduo morrer denotativamente. Basta não mais fazer sentido para nós. Sabe quando alguém perde a importância? Antes ouvíamos, agora ignoramos. Matamos o outro.
O ritual, ou protocolo manda que os Cardeais se fechem no Vaticano a fim de rezar, discutir e, enfim, apresentar o novo Papa. Igualmente também nos fechamos. Ficamos em nossa fortaleza (nosso Vaticano) interior. A diferença é apenas uma: eles vão buscar o consenso com algumas pessoas; nós, ao contrário, buscamos o que parece mais adequado chamar de coerência entre o pensar e o agir. Mas todo consenso, a bem da verdade, tem um pouco de farsa posto que não concórdia plena. Dito de outra forma, nunca conseguimos concordar cem por cento com alguém – razão pela qual mais aturamos, suportamos, do que concordamos. Acontece que toda essa discussão é (e não está) permeada de ideologia, uma normalidade nas relações, sobretudo humana.
Se há ideologia em jogo, e é quase impossível não haver, logo temos como conseqüência ações de cunho político – não necessariamente político-partidárias. E aí está parte de um problema: muitos não aceitam que em nossas ações haja, estejamos conscientes ou não, política. Porém, bastaria observar que ao tomarmos uma decisão em detrimento de outra estamos tendo uma ação política. A razão é simples: quase instintivamente pesamos prós e contras derivados da nossa ação.
Outra parte do problema (para quem assim o considera) é a inútil busca da neutralidade. A ilusão da neutralidade nos proporciona uma sensação de cansaço, sensação de que estamos trabalhando, quando, na verdade estamos enredados no conflito da adaptação [Não sei se existe esta expressão, contudo, a idéia é a de um sujeito que ‘dança conforme a música’. Se todos são do contra, por exemplo, ele também será. Se todos são a favor, idem. Neste contexto, o puxa-saco é um modelo de quem vive agradando sua chefia (compra presente, está sempre por perto, faz de tudo para agradar etc). Claro que só isso não basta. Observemos, no entanto, que essas atitudes são, na grande (e grande mesmo) maioria das vezes, dirigidas aos chefes. Daí o conflito da adaptação].
Portanto, é impossível ser neutro. Equivale dizer que temos de ter uma posição. Não basta achar, há que se ter certeza. Basta termos a consciência, mesmo que seja saber que nada se sabe. Retornando ao contexto cristão que estávamos, convém relembrarmos de um texto da Bíblia encontrado em Apocalipse, capítulo 3 e versos 15 e 16: “Eu o conheço bem – você nem é quente nem frio; eu desejaria que você fosse ou uma coisa ou outra! Porém já que você é meramente morno, eu o cuspirei...” [A Bíblia Viva. 11.ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1999].
Uma primícia deve nos rodear: a prontidão à mudança. Ter uma posição quanto ao que se pensa e ser forte nada tem a ver com estar certo ou errado. O que é relevante para nós pode não ser para o outro, mas nenhum tem de mudar em função do outro. Tem é de haver respeito e a (pré)disposição para a mudança; a consciência da evolução do mundo e daquilo que nos cerca – pois ela é a responsável pelas perguntas onde estamos e aonde queremos estar.
Enfim, parece ser melhor ter uma posição frente aos desafios da vida, não esperar que outros pensem por nós. Parece também ser melhor deixar claro quais pensamentos temos. Pois nada parece ser pior do que (re)produzir um pensamento feito, pensado, gestado por outrem.
Eu prefiro o meu.

02 abril 2005

VERDADEIRAMENTE O PAPA ERA POP

02 abril 2005 1
O grupo meio pop, meio rock Engenheiros do Hawaii disse numa de suas canções: 'O papa é pop'. E é! Agora que morreu, todos notaram. Por isso aqui vai meu reconhecimento a todos que, como ele, doam suas vidas por alguma causa. Não sou católico, apenas gosto de gente. Simplesmente corre em minhas veias um senso de gentetude que se sobressai aos dogmas religiosos. Tais dogmas muitas vezes podam a nossa liberdade. Liberdade que tanto outros lutaram para que eu a tivesse (sim, porque sou novo na idade).

Sem liberdade não podemos sonhar. Embora o sonho seja algo em nosso interior. Acontece que o tal senso de gentetude nos impulsiona a querer compartilhar com as pessoas o que se está sonhando e o sonhado. Quando nos tiram a liberdade, então, não nos tiram a capacidade de sonhar - claro. Apenas adiam, apenas protelam o nosso compartilhar e, talvez, a nossa capacidade de ajuntar mais pessoas para o mesmo lugar. É, meus amigos, às vezes nossas crenças religiosas exigem a quebra do sonho. Pede-nos para olhar de largo o antes almejado.

Gostar de gente nos faz 'dar um tempo' aos sonhos, em alguns momentos. Noutros, ele é a única alternativa. Gostar de gente nos faz perdoar. Não um perdão do tipo "perdoo mas não esqueço", mas aquele perdão que briga com a racionalidade desmedida. Gostar de gente nos faz preferir os lascados (como diz Leonardo Boff), nos faz querer o indigente, aqueles a quem a sociedade vira a cara.
Sobretudo, gostar de gente nos tira do discurso e leva para a prática. Nos faz chorar, rir, xingar, tocar, tremer, morder a língua, pisar firme. Nos mostra cotidianamente que somos humanos e, como tais, errantes na busca do acerto.

Parece que o Papa também fez isso.
Temos algo em comum: somos humanos.

TUDO É PECADO, Levi em 2005

A mesa estava posta. Havia pãezinhos picados, ali estavam pequenos copinhos com um pouco de vinho tinto – porque muito já era pecado. Mesa bonita, com pés bem torneados, com uma toalha à altura. Sobravam pontas e numa delas a famosa inscrição: Jesus.
A platéia de fiéis toda atenta, toda silenciosa, toda arrepiada, toda cabisbaixa, toda reflexão, toda a cata de algum pecado. Umas cem pessoas. Todas pobres, pelo menos é o que parecia. Pareciam ser os próprios problemas: sem estudos, vivendo a comer migalhas dos mais abastados, ou da migalha do próprio salário. Ficam torcendo e dizendo que um dia chegarão lá, um dia não serão ricos, não querem, apenas viverão uma vida mais decente, mais tranqüila. Querem ter um carro, uma casa própria, um telefone fixo e outro móvel, um computador que pode até ser velho – será usado pros tema dos filhos. No domingo querem ir ao cinema, uma vez por mês, claro. Sonham passear n’algum brique com ar de quem pode. Epa! Não dá, é pecado. De repente tudo parou na cabeça de um fiel. Pensar tudo isso num templo só pode ser coisa do demo. Ora, onde já se viu, isso é jactância, diriam aqueles homens de preto, de cinza, de azul e um pobre, de marrom e azul-claro.
Os homens de preto, cinza, azul e o pobre de marrom e azul-claro são os que ficam no lugar alto cujo nome é apropriado, altar, alto estar. Os simples mortais cá embaixo, cabisbaixos. Eles, ao contrário, olham tudo de cima. Empunham seus livros de capa preta e marcham rumo a mesa posta. Em meio aos seus caminhares parecem irem para algum céu. Um céu onde as ruas são de ouro, muros de jaspe, casas de sei lá, não posso arriscar o que não sei. É pecado. Mas lá vão eles: um ajeita o terno, o outro põe o livro preto perto do lugar que de tão cheio a boca fala, um não faz nada e o pobre arruma a gravata de crochê. Parecem morar bem, não devem ter a água cortada, devem olhar os programas da televisão dominical depois do culto, devem ser cultos. Menos o pobre. Esse sofre, ninguém sabe seu nome nem perguntam. É novo convertido, ainda é tímido, não sabe andar como convém aos obreiros destemidos, àqueles que não são covardes na obra. . nos bastidores ele vai bem: entrega convites para as reuniões no templo, faz orações antes de botar qualquer bolo frito na boca. Tem futuro, embora não goste muito da filha.
Chegaram! Estão na volta da mesa posta. Dois deles ganham a bandeja do pão, os outros, do vinho. Juntos, um com o pão e o outro com o vinho entram num corredor do templo. Os fiéis servem-se. Os distribuidores obreiros sentem-se felizes. Cantam uma música de fundo enquanto os fiéis comem do pão e bebem do vinho. A ordem e a decência contribuem para o progresso deles. Ninguém reclama, todos esperam sua vez. Criança não come nem bebe, não sabe discernir pecado. Adulto sabe, os fiéis sabem, os obreiros mais ainda. Há dúvidas quanto ao pecado ou pecados? Perguntem a eles. Não pecam e quando isso acontece ninguém fica sabendo pois eles são ungidos, separados.
Eu estou na última fila, no final da igreja. Mal vejo a mesa posta. Mas sei que está porque sempre está. Ao meu lado uma puta mulher. Puta porque é puta mesmo. Pecou. Deu antes da hora. E em alguns lugares quem dá antes da hora sai de casa antes da hora. Ela saiu. Mas dizem que o mundo é pequeno. Talvez seja. Ali vem o pai dela com uma bandeja de pão. Vem me oferecer, ela tenta pegar dois pedaços, ele diz não. Eu tento saber por quê. Ela é pecadora. Não toma ceia quem sai de casa. Também não toma ceia quem quer dois pedaços, isso é gula. Gula é pecado.
Ela disse que estava com fome. Ele disse “isso é o preço...” . Ela pecou. Ele eu não sei.

TUDO É PECADO, Levi em 2005

A mesa estava posta. Havia pãezinhos picados, ali estavam pequenos copinhos com um pouco de vinho tinto – porque muito já era pecado. Mesa bonita, com pés bem torneados, com uma toalha à altura. Sobravam pontas e numa delas a famosa inscrição: Jesus.
A platéia de fiéis toda atenta, toda silenciosa, toda arrepiada, toda cabisbaixa, toda reflexão, toda a cata de algum pecado. Umas cem pessoas. Todas pobres, pelo menos é o que parecia. Pareciam ser os próprios problemas: sem estudos, vivendo a comer migalhas dos mais abastados, ou da migalha do próprio salário. Ficam torcendo e dizendo que um dia chegarão lá, um dia não serão ricos, não querem, apenas viverão uma vida mais decente, mais tranqüila. Querem ter um carro, uma casa própria, um telefone fixo e outro móvel, um computador que pode até ser velho – será usado pros tema dos filhos. No domingo querem ir ao cinema, uma vez por mês, claro. Sonham passear n’algum brique com ar de quem pode. Epa! Não dá, é pecado. De repente tudo parou na cabeça de um fiel. Pensar tudo isso num templo só pode ser coisa do demo. Ora, onde já se viu, isso é jactância, diriam aqueles homens de preto, de cinza, de azul e um pobre, de marrom e azul-claro.
Os homens de preto, cinza, azul e o pobre de marrom e azul-claro são os que ficam no lugar alto cujo nome é apropriado, altar, alto estar. Os simples mortais cá embaixo, cabisbaixos. Eles, ao contrário, olham tudo de cima. Empunham seus livros de capa preta e marcham rumo a mesa posta. Em meio aos seus caminhares parecem irem para algum céu. Um céu onde as ruas são de ouro, muros de jaspe, casas de sei lá, não posso arriscar o que não sei. É pecado. Mas lá vão eles: um ajeita o terno, o outro põe o livro preto perto do lugar que de tão cheio a boca fala, um não faz nada e o pobre arruma a gravata de crochê. Parecem morar bem, não devem ter a água cortada, devem olhar os programas da televisão dominical depois do culto, devem ser cultos. Menos o pobre. Esse sofre, ninguém sabe seu nome nem perguntam. É novo convertido, ainda é tímido, não sabe andar como convém aos obreiros destemidos, àqueles que não são covardes na obra. . nos bastidores ele vai bem: entrega convites para as reuniões no templo, faz orações antes de botar qualquer bolo frito na boca. Tem futuro, embora não goste muito da filha.
Chegaram! Estão na volta da mesa posta. Dois deles ganham a bandeja do pão, os outros, do vinho. Juntos, um com o pão e o outro com o vinho entram num corredor do templo. Os fiéis servem-se. Os distribuidores obreiros sentem-se felizes. Cantam uma música de fundo enquanto os fiéis comem do pão e bebem do vinho. A ordem e a decência contribuem para o progresso deles. Ninguém reclama, todos esperam sua vez. Criança não come nem bebe, não sabe discernir pecado. Adulto sabe, os fiéis sabem, os obreiros mais ainda. Há dúvidas quanto ao pecado ou pecados? Perguntem a eles. Não pecam e quando isso acontece ninguém fica sabendo pois eles são ungidos, separados.
Eu estou na última fila, no final da igreja. Mal vejo a mesa posta. Mas sei que está porque sempre está. Ao meu lado uma puta mulher. Puta porque é puta mesmo. Pecou. Deu antes da hora. E em alguns lugares quem dá antes da hora sai de casa antes da hora. Ela saiu. Mas dizem que o mundo é pequeno. Talvez seja. Ali vem o pai dela com uma bandeja de pão. Vem me oferecer, ela tenta pegar dois pedaços, ele diz não. Eu tento saber por quê. Ela é pecadora. Não toma ceia quem sai de casa. Também não toma ceia quem quer dois pedaços, isso é gula. Gula é pecado.
Ela disse que estava com fome. Ele disse “isso é o preço...” . Ela pecou. Ele eu não sei.

NÃO ME IMPORTA, Levi em 2004 - para uma amiga: AM

Pouco me importa em relação ao que os outros dizem
Não me interessa se agrado ou não
Não nasci pra agradar
Não nasci pra falar certinho
Não nasci pra ser elite, nem elitizante
Pouco me importam os belos discursos
Tanta gente há que diz e não faz
Ou que faz e não diz
Ou nem fazem nem dizem

Não me importa os inoportunos
Que se danem eles, quero aproveitar as oportunidades
Quero ser hoje mais feliz que ontem

Como é fácil falar, como é difícil fazer
Por isso mais se fala e menos se faz
Pior é saber disso e continuar agindo igual
Do que adianta a idade, os cabelos mudando de cor
E se a prática continua arcaica?
De um tempo em que vivíamos como mudos
Andávamos como coxos
Pedindo licença pra tudo
Tempo em que a criação ficava na gaveta
Tempo em que divergir era dar adeus à vida
Tempo em que discordar era ser perseguido

O tempo de hoje não será outro tempo?
Por que reviver o que foi tão ruim
Será bom matar clandestinamente os sonhos dos outros?
Será bom matar incandescentemente a esperança dos outros?
Será bom matar perversamente o que os outros têm de melhor?
Será bom matar desesperadamente aquilo que não se tem, mas, se vê no outro?

Pra que serve o título senhor
Pra que serve o tanto falar
Pra que serve o regurgitar de idéias
Pra que serve a nefasta tarefa do pensar – neste caso
Pra que servem os amigos mais íntimos
Pra que serve essa gente que lhe rodeia
Pra que serve esse povo que lhe paga
Pra que serve esse país cheio de Histórias
Pra que serve esse continente sofrido
Pra que serve essa América achada
Pra que serve esse mundo
Pra que serve essas mãos
Pra que esses pés
Pra quê
Pra quê
Você, se pouco me importa?

A VIDA, Levi em 2001

Tristezas, alegrias
Noite, dia
Céu, véu, réu, papel
Prisão, ação, encomodação, assombração
Tem o petista, o que arrisca e o que petisca
Tem risonho, tem sonho
Tem trabalho, tem atalho, tem baralho tem alho
Tem neve, tem fezes, tem greve
Tem doces, tem poses, tem closes, tem flores
Tem nós, tem voz, tem nozes
Tem cultura, tem agricultura, tem falcatrua
Tem crítico, tem místico, tem político
Tem tu, tem eu, tem nós
E então ouvimos, sentimos, preferimos:
O que é bom e não machuca,
Tem som mas não desembucha
Tem tom e não embuça
Não desafina, se afina
Se aprimora, não demora
Não dói, não corrói
Não duvida
Tem vida
 
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