Levi Nauter
Quando se publica um texto, seja na forma livro ou e-livro ou até em outro formato, não temos mais domínio sobre ele. Quem o lê inevitavelmente chegará a conclusões próprias. Que bom, diga-se de passagem, a democracia e a liberdade têm essa característica, entre outras. Acontece que, como uma mãe cuidadosa com os filhos, a gente sempre tem uma idéia, uma espécie de finalidade quando senta na frente de um computador ou pega um caderno e põe-se a escrever. Tais objetivos podem não combinar com o que o nosso leitor espera ou vai interpretar.
Uma das hipóteses para essa ocorrência tem a ver com as nossas vivências. Eu tenho um determinado círculo de amizades, de leituras do mundo (cosmovisão) e da palavra (livros, jornais, revistas, filmes etc), meus trejeitos característicos que me tornam uma pessoa singular. Todos os seres humanos são assim. É possível que em algum momento meus gostos combinem com os de outros (música, por exemplo), verificamos um princípio de afinidade. A afinidade parece, então, estar ligada a, digamos, gostos comuns. Digo parece porque temos de observar outra questão: também é possível um relacionamento interpessoal a partir das diferenças. Neste particular, alguma outra coisa pode dar o sustento, o respeito é uma hipótese. Existem pessoas que cujas idéias são frontalmente opostas as minhas, mesmo assim temos uma boa relação. Não é o caso de minha esposa (a querida e especial Lu). Com ela a relação é de pura afinidade, em que pese igualmente pautar-se pelo respeito. Ocorre que a afinidade é maior. Se não tivéssemos afinidades seria difícil convivermos; poderíamos ter respeito (e temos) um pelo outro, mas isso não bastaria. A razão parece ser simples: há muita gente com as quais tenho somente respeito, não afinidade. Com essas posso trocar idéias informações, aprender e apreender uma série de coisas. Porém, a afinidade tornaria mais dinâmica essa relação, daria mais profundidade.
Interessante notarmos que a relação por afinidade transcende as regras, o que parece não ocorrer com o simples respeito. Quando nos relacionamos com alguém somente com o respeito, fazemos determinadas ações porque previamente sabemos que “isso ele/a gosta, aquilo não”. Deve ser muito chata uma convivência por regras, a quebra de uma delas pode comprometer o resto. Mas também penso que tanto a afinidade quanto o respeito precisariam entranhar-se de humanidade. Quero dizer que deveríamos procurar/tentar entender o ser humano que existe em nós, i.e., erros, mal-entendidos, falhas na comunicação, decepções, alegrias, tristezas, indignação, estagnação, dinamismo, e, enfim, tudo o que nos faz gente.
Ao escrevermos um texto, nele colocamos, conscientes ou inconscientes, essa humanidade, essa pulsão de vida e/ou morte que está em nós. Um texto, portanto, é um registro do momento. Não significa não mudança, estagnação. Ele reflete um momento histórico, encerra-se nele uma cosmovisão sócio-histórica importante. Por isso é importante a história do autor, não para dizer que ele é necessariamente um reflexo de seu texto, mas, sim, que, de certa forma, foi um momento em que toda sua humanidade, gentetude, estava focada num determinado lugar (assunto que gerou o texto). Quando escrevemos, registramos nossos pensamentos – que, não custa reafirmar, vêm entranhados de outros de cuja essência nos apropriamos.
O problema está na publicação. Torna-se público o que era um pensamento seu. No entanto, a letra, seca, sem gestos, às vezes sem notas de rodapé, tem um efeito contrário ao que esperávamos. Algo aparentemente sem muita pretensão pode tornar-se uma bomba. Por que isso acontece? Pois quem lê não tem, mesmo que queira, a nossa vivência, o nosso círculo de amizades, a nossa cosmovisão, o nosso conteúdo sócio-histórico. Na verdade, na verdade o problema, mais especificamente, está na leitura. Isso é o que venho chamando de as implicações do dizer. Num outro texto que publiquei, escrevi sobre o direito de dizermos o que pensamos[1], falei a respeito da importância de outros lerem o que pensamos, o como vemos o mundo, entre outras questões. Mas não toquei nas implicações do nosso dizer.
Pois quem lê traz à tona suas próprias vivências e as coloca entre a sua leitura e o texto. Ou seja, se esquece que “quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos seu processo mental... Quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar.” (Schopenhauer[2], p. 127). Pode-se dizer que o leitor deveria ter como ideal conseguir ler sem dar pitacos, num primeiro momento. Em seguida, aí sim, poderia/deveria relacionar o lido com suas próprias vivências para, só então, exercer o seu direito de dizer. começaria um círculo textual: alguém escreve, é lido; esse leitor (re)escreve e é respondido com a ampliação do primeiro texto/discurso e assim sucessivamente até, talvez, se chegar a um consenso ou alguém entender que não valha a continuidade do diálogo.
Tal recurso dialógico será possível na medida em que perpassar pela afinidade ou pelo respeito. A primeira opção possivelmente seja mais duradoura e promete uma boa quantidade de textos; a segunda pode ser que canse mais facilmente.
Num blog e numa crônica o texto é mais livre. Há um certo objetivo, claro, mas, sobretudo, há uma pessoalidade que dispensa formalismos até gramaticais. Alguns estudos apontam que até a linguagem internética está sendo mais aceita. Que tal aceitarmos mais a diversidade advinda no embalo pós-moderno? Quem sabe não sejamos mais sábios a partir do respeito à palavra do outro, apenas limitando-nos a dizer “concordo” ou “discordo”? Que tal assumirmos as implicações de dizermos nossa palavra? E se não cometêssemos o mesmo erro histórico da igreja que nega a palavra a quem pensa diferente? Que você acha de mais diálogo, mais dialética, mais tensão no discurso?
Vivam as palavras, as leituras, os escritos, os papéis, as mentes, os inquietos, os quietos, os loucos, os sóbrios, o lápis, a caneta, o computador, a internet, a Bíblia, a literatura, a pseudoliteratura, os poetas, a coragem, a humildade, o desafio, o papel em branco, a idéia, os dedos, a boca. A vida. O Autor da Vida.
[1] Crônica na Eja: instrumento daquilo que se pensa ou se quer dizer. In Reflexões sobre a educação de jovens e adultos. Santa Maria: Pallotti, 2006.
[2] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Trad., Org., Prefácio e nodas de Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2005.
Uma das hipóteses para essa ocorrência tem a ver com as nossas vivências. Eu tenho um determinado círculo de amizades, de leituras do mundo (cosmovisão) e da palavra (livros, jornais, revistas, filmes etc), meus trejeitos característicos que me tornam uma pessoa singular. Todos os seres humanos são assim. É possível que em algum momento meus gostos combinem com os de outros (música, por exemplo), verificamos um princípio de afinidade. A afinidade parece, então, estar ligada a, digamos, gostos comuns. Digo parece porque temos de observar outra questão: também é possível um relacionamento interpessoal a partir das diferenças. Neste particular, alguma outra coisa pode dar o sustento, o respeito é uma hipótese. Existem pessoas que cujas idéias são frontalmente opostas as minhas, mesmo assim temos uma boa relação. Não é o caso de minha esposa (a querida e especial Lu). Com ela a relação é de pura afinidade, em que pese igualmente pautar-se pelo respeito. Ocorre que a afinidade é maior. Se não tivéssemos afinidades seria difícil convivermos; poderíamos ter respeito (e temos) um pelo outro, mas isso não bastaria. A razão parece ser simples: há muita gente com as quais tenho somente respeito, não afinidade. Com essas posso trocar idéias informações, aprender e apreender uma série de coisas. Porém, a afinidade tornaria mais dinâmica essa relação, daria mais profundidade.
Interessante notarmos que a relação por afinidade transcende as regras, o que parece não ocorrer com o simples respeito. Quando nos relacionamos com alguém somente com o respeito, fazemos determinadas ações porque previamente sabemos que “isso ele/a gosta, aquilo não”. Deve ser muito chata uma convivência por regras, a quebra de uma delas pode comprometer o resto. Mas também penso que tanto a afinidade quanto o respeito precisariam entranhar-se de humanidade. Quero dizer que deveríamos procurar/tentar entender o ser humano que existe em nós, i.e., erros, mal-entendidos, falhas na comunicação, decepções, alegrias, tristezas, indignação, estagnação, dinamismo, e, enfim, tudo o que nos faz gente.
Ao escrevermos um texto, nele colocamos, conscientes ou inconscientes, essa humanidade, essa pulsão de vida e/ou morte que está em nós. Um texto, portanto, é um registro do momento. Não significa não mudança, estagnação. Ele reflete um momento histórico, encerra-se nele uma cosmovisão sócio-histórica importante. Por isso é importante a história do autor, não para dizer que ele é necessariamente um reflexo de seu texto, mas, sim, que, de certa forma, foi um momento em que toda sua humanidade, gentetude, estava focada num determinado lugar (assunto que gerou o texto). Quando escrevemos, registramos nossos pensamentos – que, não custa reafirmar, vêm entranhados de outros de cuja essência nos apropriamos.
O problema está na publicação. Torna-se público o que era um pensamento seu. No entanto, a letra, seca, sem gestos, às vezes sem notas de rodapé, tem um efeito contrário ao que esperávamos. Algo aparentemente sem muita pretensão pode tornar-se uma bomba. Por que isso acontece? Pois quem lê não tem, mesmo que queira, a nossa vivência, o nosso círculo de amizades, a nossa cosmovisão, o nosso conteúdo sócio-histórico. Na verdade, na verdade o problema, mais especificamente, está na leitura. Isso é o que venho chamando de as implicações do dizer. Num outro texto que publiquei, escrevi sobre o direito de dizermos o que pensamos[1], falei a respeito da importância de outros lerem o que pensamos, o como vemos o mundo, entre outras questões. Mas não toquei nas implicações do nosso dizer.
Pois quem lê traz à tona suas próprias vivências e as coloca entre a sua leitura e o texto. Ou seja, se esquece que “quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos seu processo mental... Quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar.” (Schopenhauer[2], p. 127). Pode-se dizer que o leitor deveria ter como ideal conseguir ler sem dar pitacos, num primeiro momento. Em seguida, aí sim, poderia/deveria relacionar o lido com suas próprias vivências para, só então, exercer o seu direito de dizer. começaria um círculo textual: alguém escreve, é lido; esse leitor (re)escreve e é respondido com a ampliação do primeiro texto/discurso e assim sucessivamente até, talvez, se chegar a um consenso ou alguém entender que não valha a continuidade do diálogo.
Tal recurso dialógico será possível na medida em que perpassar pela afinidade ou pelo respeito. A primeira opção possivelmente seja mais duradoura e promete uma boa quantidade de textos; a segunda pode ser que canse mais facilmente.
Num blog e numa crônica o texto é mais livre. Há um certo objetivo, claro, mas, sobretudo, há uma pessoalidade que dispensa formalismos até gramaticais. Alguns estudos apontam que até a linguagem internética está sendo mais aceita. Que tal aceitarmos mais a diversidade advinda no embalo pós-moderno? Quem sabe não sejamos mais sábios a partir do respeito à palavra do outro, apenas limitando-nos a dizer “concordo” ou “discordo”? Que tal assumirmos as implicações de dizermos nossa palavra? E se não cometêssemos o mesmo erro histórico da igreja que nega a palavra a quem pensa diferente? Que você acha de mais diálogo, mais dialética, mais tensão no discurso?
Vivam as palavras, as leituras, os escritos, os papéis, as mentes, os inquietos, os quietos, os loucos, os sóbrios, o lápis, a caneta, o computador, a internet, a Bíblia, a literatura, a pseudoliteratura, os poetas, a coragem, a humildade, o desafio, o papel em branco, a idéia, os dedos, a boca. A vida. O Autor da Vida.
[1] Crônica na Eja: instrumento daquilo que se pensa ou se quer dizer. In Reflexões sobre a educação de jovens e adultos. Santa Maria: Pallotti, 2006.
[2] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Trad., Org., Prefácio e nodas de Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2005.
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