20 outubro 2005

ESTOU VENDO A MORTE

20 outubro 2005
Levi Nauter
"Em seu féretro com panejamentos de púrpura,
separada da realidade por oito torniquetes de cobre,
a Mamãe Grande estava então por demais embebida
e sua eternidade de formol para perceber
a magnitude de suagrandeza."
(García Marquez, in Os funerais da mamãe grande)
Não gostaria de ter que admitir. Mas ela está rondando meus entes queridos. Minha mãe está morrendo. Já não posso mais negar, queria que tudo não passasse de uma ilusão, gostaria de ver minha mãe gorda e saudável, forte e convincente, lúcida e guerreira. Ao contrário, vejo-a como uma caveira, não porque quero, é que assim ela está. Seu olhar é fundo, quando a abraço sinto os ossos escondidos por uma pele escura e judiada – pele recheada de hematomas, cicatrizes (aproximadamente quatro cirurgias de hérnias), feridas que insistem em contaminar em função de uma diabete quase implacável. São algumas pistas da morte que vem chegando. Agora, sob controle, lá estão os sinais das tais feridas que tanto foram coçadas.
Olho para ela e sinto-a como que querendo abraçar a dita cuja. Como se dissesse “venha, estou pronta para dormir o sono das sombras”. Há nela um olhar de morte, de desespero, de “me tirem desse mundo”. Ar de sofrimento que se esgota, de quem já apanhou que chega da vida mesclado por uns tapas do marido (aquele para quem ela se entregou, foi fiel, deu). Ar de quem, nalguns momentos, defendeu-me de apanhar nas vezes em que fiz ‘arte’, nas vezes em que tentei ser gente e meu pai não entendeu. O fio de luz com o qual eu apanhava parou, fortemente seguro pelas mãos da mãe. A mesma mão que fazia faxina para complementar a renda familiar. Também a mesma que ousou trazer gibi para os filhos lerem algo que não fosse a Bíblia. Igualmente a que trouxe uma televisão quando um desgraçado evangelho pregava a teologia do medo.
Sua voz anda embargada, sem forças. Não tem a mesma impetuosidade de outrora, quando gritava “vem pra dentro ou entrego vocês pro pai” ou ao dizer “é um diabo esse guri”. Ainda a mesma que amedrontava ao dizer “não vai te passar com as tuas irmãs”. Ah, voz. A idêntica que noutros tons deve ter sussurrado com meu pai e, puxa, a sinônima que o mandou-o embora ao saber que fora traída. Finalmente, a mesmíssima que foi abafada na tentativa de esconder choros devido aos sofrimentos psicológicos.
Pernas fracas. Elas estão entregues às traças, já não têm a mesma firmeza das vezes em que caiu comigo no colo sem que eu alcançasse o chão. E que colo bom era... Lembro-me dele quando nossa casa destelhou. O colo, o cobertor, um saco plástico e as rezas nos salvaram.
.......

5 comentários:

Anônimo

Muito bom, dolorido, mas muito bem expressado.

Anônimo

Palavras que transmitem uma sensibilidade escondida num semblante austero, seguro e afetuoso ao mesmo tempo...vcê escreve muito bem, impossível não se envolver com o que se está lendo...

Anônimo

Ô Levi! Tocante teu texto, muito mesmo! Ainda mais que vi Lavoura Arcaica, ontem. Impossível não relacionar teu texto ao filme. Dá uma olhada. Forte e sensível, como tuas palavras.

MARI LEMES

Que beleza de produção!! O anúncio da morte que só é possível ser expressada porque é o último ato da Vida nessa esfera da nossa existência. Mas o texto se torna belo, não apenas pelas palavras bem expressadas, e sim pelo seu conteúdo: repleto de uma vivência familiar, de uma cultura que traduz o cotidiano de muitas famílias de todos os nossos tempos. Logo, o anúncio da morte foi o dispositivo para a denúncia da negação de direitos a que estão submetidos, ainda hoje, um número imensurável de crianças, adolescentes e mulheres, principalmente... e, a mãe foi amorosa e estratégica até o fim. Gratidão pela partilha.

Unknown

Levi,
Eu chorei ao ler teu texto. Fiquei arrepiada do início os final do texto. Nunca vi, vivi e li algo parecido, ainda mais de alguém próximo. Um texto que expressa:
1. Tua aproximação com tua mãe, que mesmo de longe, demonstra os sentidos e significados da presença e ausência dela em tua vida;
2. A dor e a sensibilidade, características de um escritor que escreve com as mãos e coração.
3. Tua vivência familiar foi sendo descritas de um modo que a relação morte-vida se faz presente no sentido real e figurado dos termos. Gostei de ler e mais do que isto de estar mais próxima da história de vida de um amigo, que é diferente da minha, mas possui muitas semelhanças.

 
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